Citroën é mais legal

Felipe Beck Le Bihan
5 min readMay 15, 2021

Sobre meu relacionamento de 20 anos de amor à marca

Geopoliticus Child Watching the Birth of the New Man — Salvador Dalí

Imagine cortar um ovo cozido da mesma forma como se abre um abacate: circundar a gema e separá-la da clara igual um caroço se separa da polpa verde da fruta. Não digo que isso vá ser prático ou fácil, mas nem por isso deixa de ser uma proposição interessante. Pode me chamar de chato, do contra, o que preferir, é um tema recorrente por aqui. Mas é inegável dizer que existe sempre um certo charme, uma qualidade que só aquilo que é pensado para ser diferente pode oferecer.

Para quem me conhece, sabe que sempre tive um certo fascínio por carros e pelo hábito de dirigir. Pois bem, quando cheguei aos 18 anos, fui todo animado à autoescola para começar a aprender. Me ofereceram um instrutor um tanto desonesto e um Volkswagen Up!, novinho e bastante honesto. É um carro pequeno, fácil de guiar, com uma direção tão levinha que você nem sente, e vinha com tudo que fosse necessário para alguém que estivesse aprendendo a dirigir, o retrovisor direito tinha um truque esperto e mirava o espelho para baixo junto com o engate da marcha ré. Não dava para dizer que era lindo, mas tinha um quê moderninho típico dos alemães, parecia uma torradeira Braun. Entre todos os adjetivos, escolheria “competente” para ele. Acontece que por mais competente que fosse, jamais escolheria um Up! como algo para minha vida, caso pudesse me dar o luxo de escolher.

Ainda não tive a oportunidade, mas gostaria de dirigir um Citroën.

Meu relacionamento com a marca é de longa data, adianto. Não só por compartilharmos um nome esnobe e francês, mas porque passei parte da minha infância dentro dos modelos da marca, ou admirando aqueles que não estavam ao meu alcance. Conto, então, um pouco da minha história.

O carro do meu avô era mais ou menos assim — Rutger van der Maar, CC via Wikimedia Commons

Começo pelo meu avô. Ele tinha o hábito de trocar de carros com alguma frequência. Chegou certo dia em que nos recebeu no aeroporto de Florianópolis, onde a família da minha mãe toda reside, com um Xsara Picasso branco. Parecia uma espaçonave, ou, apesar do nome em homenagem ao mestre cubista, lembrava o ovo gigante pintado por outro artista, também espanhol: Dalí. Volto a pensar em ovos, veja bem. Dessa época, tenho um bloco de cartões postais que ele ganhou na concessionária e me deu, guardo até hoje como lembrança. Infelizmente a nave branca durou pouco e logo foi substituído por uma perua Mégane verde que era objetivamente mais bonita, mas não tinha nem a metade da graça. Curiosamente, a Mégane acabou durando bons anos nas mãos dele, e também me traz certa admiração. Mas não era nenhum Picasso, vamos admitir.

Avançados alguns anos, lembro dessa vez do meu pai. Ele sempre teve uma paixão por carros off-road, mas na época tínhamos outras prioridades. Chegou o momento de buscar um carro novo e ele acabou optando por um C3 XTR, pintado em um tom de prata que debaixo da luz esboçava uma tímida cor de champagne. Os adereços plásticos traziam o ar aventureiro que ele queria, mas o formato simpático de bolinha e as lanternas em formato de triângulo me lembravam da Torre Eiffel, o lugar mais chique do mundo na minha cabeça de criança. E, de fato, era coisa fina mesmo. Uma pena que também foi logo substituído, dessa vez por um barulhento, apertado e sacolejante Pajero TR4, que só serviu pra atender o desejo do meu pai e que só traz saudades a ele, felizmente.

Um carro quase igual ao que foi do meu pai, salvo pelo fato deste da foto ser alguns anos mais velho — order_242 from Chile, CC via Wikimedia Commons

Mas não fica só por aí. Aqui no Brasil, por milhares de razões, acabamos recebendo modelos mais mundanos, e é extremamente comum que as pérolas mais raras da marca fiquem reservadas à Europa. Uma pena mesmo, pois são várias as que a marca coloca no mercado do outro lado do mundo. Aqui, me restrinjo a falar do C3 Pluriel, a versão mais ousada do compacto da marca lançada nos idos de 2000. Usando do dito popular, era uma ideia de jerico: um carro que podia ter seu teto retraído e mesmo as colunas estruturais desmontadas para tornar o compacto em um conversível, pensado para um passeio por praias do Mediterrâneo, idealmente no glamuroso sul da França. Abaixo, recupero um vídeo que explica todo o carrinho para os curiosos.

Inusitado, no mínimo

É obvio que não foi um sucesso de vendas. Não dá pra dizer que se trata de algo irresistivelmente bonito, muito menos de uma ideia com grande valor prático. E se chovesse no meio do caminho? Uma pena, as barras que sustentam o teto tiveram de ficar em casa. E, mesmo com todas estas desvantagens, é inegável que é um carrinho cheio de charme, assim como é inegável que trata-se de uma forma muito diferente de se ver o carro.

Justamente essa forma inusitada, talvez, que chame minha atenção, não só no produto, mas na forma de se colocar no mundo. Afinal, foi a Citroën que transformou um carro em um robô e o colocou para dançar na televisão. E também foi ela que, lá nos anos 80, colocou Grace Jones, a beauté sauvage, cantando em um CX que saía de uma versão gigante de sua cabeça, neste que é meu comercial favorito de todos os tempos em razão de todo seu nonsense:

Yeah, yeah, yeah!

Não vou mentir e dizer que a marca oferece carros perfeitos, longe disso. Na realidade, é uma marca que, ao menos no Brasil, é reconhecida por seu péssimo serviço de manutenção pós-venda. Também não vou dizer que tudo que eles oferecem funciona 100% do tempo. Mas será mesmo que, no fim das contas, tudo isso realmente importa? Um alemão pragmático responderia que sim, e diria que carro bom é Das Auto, como o prático Up! que me serviu de escola. Mas eu, por outro lado, não consigo pensar dessa maneira. Para minha vida, quero mais Créative Technologie, tal como dizia a moça de voz suave no final peça publicitária da Citroën.

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Felipe Beck Le Bihan

Estudante na ESPM-SP. Consumidor de cultura pop e outras coisas também, autocrítico e às vezes meio mala. felipebeck.com