Midsommar, colonização e a lógica do coletivo

Felipe Beck Le Bihan
6 min readMay 15, 2021

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Não é sobre nós

A protagonista Dani (Florence Pugh) em cena do filme — Reprodução

Aviso: o texto contém spoilers

Falar de cinema com frequência é algo que busco evitar por aqui. Discordem o quanto quiserem, mas não existe nada mais insuportável que o arquétipo do cinéfilo cult, daqueles cheios de opiniões acerca de obras cinematográficas pretensiosas. Mas admito que também estive sumido, sem grandes ideias que pudessem render textos interessantes. Então, cá estou eu, de novo, recorrendo à películas pretensiosas para dissertar. Desde já, peço perdão.

Por outro lado, devo admitir que sempre tive uma certa curiosidade com Midsommar. As imagens do filme que circulam na internet são sempre lindas, mas todo mundo fala do choque que sentiu depois de assistir. Além disso, é uma obra da A24, que sempre tem alguma descoberta interessante no catálogo e que faz a cabeça dos jovenzinhos de hoje em dia com títulos como Euphoria. Resolvi, então, tirar uma tarde, alguns dias atrás, para assistir. Acontece que tenho uma certa resistência, uma chatice entre tantas que tenho, em ver qualquer audiovisual que "da moda", talvez por causa da minha preguiça eterna dos fandoms que se formam na internet, então acabei demorando muito para ver o filme. E eu ainda tenho a coragem de criticar o cinéfilo chato, veja bem. Se me falta o bom senso, pelo menos fico com o bom-humor e com a autocrítica.

Mas Midsommar é mesmo especial, já adianto. O filme de Ari Aster conta a história de Dani, vivida por Florence Pugh, que lida com o luto decorrente de uma tragédia que lhe faz perder a irmã e os pais ao mesmo tempo em que busca refúgio em Christian (Jack Reynor), um namorado insatisfeito. Pouco tempo depois, eles vão entre amigos visitar a comuna onde nasceu o colega sueco Pelle (Vilhelm Blomgren) para participar do festival do solstício de verão. Ao longo do filme, eles acabam se percebendo inseridos em culto tradicional em que as pessoas, de dentro e fora da vila, se veem obrigadas a sacrificarem suas vidas como oferenda à natureza.

De pronto, já acredito que uma forma interessante de se pensar esse filme é pela forma como ele foi categorizado pela mídia e pelos espectadores em geral: trata-se de um filme de terror. Concordo que há diversas cenas fortes, difíceis de assistir pelo seu teor gráfico, envolvendo mortes, sangue, entre outros elementos comuns ao gênero. Mesmo assim, penso que esse longa, com toda sua complexidade, não merece ser tratado como uma mera obra de "terror", ao menos como conhecemos o gênero atualmente, em toda sua riqueza de assassinatos, espíritos e serial killers. Explico:

Em primeiro ponto, levanto uma reflexão: para além do luto de Dani, Midsommar narra uma visita de estadunidenses a uma sociedade extremamente tradicional e os "horrores" que vivenciam em meio aos rituais deste povo, intimamente ligados à sua relação cíclica e de devoção à natureza que lhes provém. Se formos ver este enredo sob uma ótica histórica, não é muito diferente do que aconteceu com exploradores europeus que se chocaram com povos nativos e buscaram impor sua visão de mundo, infectando Ásia, América e África em séculos de colonização guiada pela ótica do eurocentrismo. Imagine se Dani e seus amigos estivessem no Brasil visitando uma tribo indígena, reclusa como o povo de Hårga, e descobrissem que a prática antropofágica ocorre há séculos? Não consigo deixar de enxergar este paralelo. Se antes eram os europeus, hoje são o fruto estadunidense que busca impor, mundo afora, seus jargões, suas marcas, sua política, etc., e que se choca quando se vê de encontro com outros paradigmas de sociedade. Vejo esse filme como uma forma interessante de ilustrar este cenário, que jamais deixa de ser atual.

A riqueza da obra de Ari Aster, porém, não se encerra aí. Alguns de seus temas principais são o suicídio e a forma como diferentes pessoas e sociedades tratam desses assuntos, tão delicados. Adianto: já primeiras cenas do longa, Dani se encontra em choque com a notícia de que sua irmã, Terri, que sofre de transtorno bipolar, havia asfixiado a si e aos seus pais durante uma noite de crise, levando-lhes a morte. Em contraste, a mesma Dani, ainda lidando com o luto, se encontra, pouco tempo após chegar à Suécia, no contexto de um ritual em que os membros mais idosos da comuna de Hårga se atiram de um penhasco, de forma a encerrarem seu ciclo na Terra, em uma das cenas mais chocantes e brutais deste que é um filme chocante e brutal.

A relação com a morte nestes dois momentos revela um contraste extremamente interessante de se pensar quando levamos em consideração os dois paradigmas de sociedade constantemente em choque neste filme. Por um lado, a lógica do da individualidade, do ego, do eu dos estadunidenses — e, de certa forma, de todos nós no Ocidente, sobretudo em tempos de pandemia, em que saúde mental virou motivo para visitar bares sem usar máscara — de outro, uma sociedade extremamente tradicional em que o imperativo do nós, acima de qualquer um dos membros ali inseridos, é soberano. É quase como se o filme pegasse a dialética de Durkheim acerca da solidariedade e tomasse para si, ilustrando-a sem medo de espantar o espectador.

Essa mesma dicotomia se repete em diversos momentos. Um a um, cada um dos visitantes se vê submetido ao sacrifício de Midsommar, justamente em função de seu egoísmo. Josh (William Jackson Harper, também no incrível The Good Place) por se recusar a dividir seu estudo antropológico acerca do povoado com Christian, Mark (Will Poulter, repetindo o arquétipo de todos os personagens de sua carreira) por urinar em uma árvore considerada sagrada e, por fim, Christian, desta vez por decisão de Dani.

Esta última é, com certeza, a mais interessante. A protagonista, ainda que relutante à princípio, encontra a catarse para seu luto no coletivismo desse povo tão diferente da nossa visão infectada de sociedade. Logo após receber o título de Rainha de Maio, o mais importante de toda a celebração, descobre que Chris havia lhe traído ao se submeter a um ritual de cópula que tem o objetivo de perpetuar essa comunidade. Em uma das cenas mais potentes de todo o filme, o sofrimento de Dani com a descoberta é mitigado e compartilhado entre outras mulheres que, curiosamente, emulam seus gestos de choro como forma de dividir a dor. Ao leitor curioso com a cena, compartilho ela abaixo:

Dani descobre a traição de Chris — Reprodução

A celebração então se encerra com a entrega de todos os corpos, nativos e estrangeiros, submetidos à natureza. Enquanto Rainha de Maio, Dani tem a possibilidade de escolher entre um nativo sorteado ou o último visitante remanescente, justamente Chris, para sacrificar junto aos outros mortos. Tão paradoxal, esta sequência encerra o filme com a heroína escolhendo pela morte de uma pessoa levando considerações pessoais para um contexto onde a coletividade encontra-se em seu ápice. É a conclusão de um processo extremamente pessoal de cura por meio do outro. Mas, mais paradoxal ainda, é perceber que Chris, escolhido em razão de cometer uma traição, somente o fez pela força coercitiva dos locais para tal.

O grande desconforto do longa reside, talvez, no fato de que nós, enquanto espectadores, não compartilhamos da mesma catarse que Dani, justamente por se tratar de um clímax tão, bem, anticlimático. Porém, o que percebi em Midsommar é que o filme não é sobre mim, sobre você, sobre nós ou muito menos sobre Dani. É sobre o coletivo, mas de um coletivo que nenhum de nós jamais pertenceremos. No fim, nesta sociedade fantástica e extremamente curiosa de Hårga, é sempre o grupo que vence, que se protege e que se perpetua. Em tempos de self e de selfie, não dá para não se fascinar com essa obra.

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Felipe Beck Le Bihan

Estudante na ESPM-SP. Consumidor de cultura pop e outras coisas também, autocrítico e às vezes meio mala. felipebeck.com