Sobre o Mundano Extraordinário

Felipe Beck Le Bihan
12 min readMar 26, 2021

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E como tenho reavaliado e buscado por novas formas de ver conteúdo neste ano de pandemia

Ultimamente não tenho tido mais vontade de ver certos filmes. Daqueles que em que há uma aventura na vida de um protagonista, com uma jornada bem definida em começo, meio e fim. Histórias daquelas que são únicas no mundo e cujos personagens, ainda que tenham traços que causem identificação do espectador, são indivíduos que pertencem a um universo paralelo, muito parecido com este em que eu e possivelmente você estamos, mas com um certo distanciamento que somente o fator ficcional é capaz de conferir.

Não me leve como pretensioso, por favor, este é o meu maior medo. Entenda que amo Miranda Priestly (Meryl Streep) e Andrea Sachs (Anne Hathaway) e que já vi O Diabo Veste Prada pelo menos umas dez vezes, se não mais, e pelo menos três delas foram no ano passado. Era para mim uma put* alienação, 90 minutos que lhe absolvem até mesmo de problemas pandêmicos e lhe convencem a se preocupar com botas Chanel, a importância mercadológica do azul cerúleo e se Emily, o ícone subestimado desse filme, de fato conseguirá realizar seu sonho de ir à Semana de Moda de Paris. E olha que este nem é o meu filme favorito — o posto fica para o absurdo, bizarro e chocante Climax, de Gaspar Noé.

Eu poderia argumentar que Prada é, sem dúvida, um filme que dialoga em certo grau com a realidade que eu vivo. Assim como Andy, busco com certo ardor um posto com o qual me encaixe e também já tive um chefe cretino que me causou o desejo pela demissão, logo no meu primeiro trabalho. A título de curiosidade, não tive a mesma perseverança que ela e durei seis semanas antes de me demitir. Quem sabe se fosse um emprego em Nova Iorque, na revista mais importante do mundo, com a mulher mais importante dos negócios de moda e acesso a roupas de grife à vontade. Talvez assim teria perdurado mais. E é justamente entre essas tantas diferenças que mora meu desconforto.

Martha Terenzzo, minha professora na faculdade, diz em seu livro O guia completo do Storytelling, co-escrito com Fernando Palacios, que todas as boas histórias tem "acontecimentos emocionantes, acontecimentos improváveis, lugares pitorescos, personagens marcantes e conflitos inescapáveis". E não discordo dela nesse quesito. Entretanto, muitas coisas que vivi neste ano de isolamento têm feito com que buscasse histórias mais distantes do que se costuma se associar às tais "boas histórias", geralmente ligadas aos filmes de grande sucesso de bilheteria, e passasse a desejar por narrativas, acredito eu, mais reais, ou talvez aquelas histórias que, por algum motivo, sinto mais próximas a mim. O fato é que o tempo que tenho passado em casa me fez reavaliar muitas coisas, e mesmo os grandes sucessos que assisti e reassisti por diversas vezes, por mais familiares e outrora confortantes, não saíram ilesos.

Muitos dos filmes que chamo de "grandes sucessos" são produtos mercadológicos. Funcionam de forma análoga a uma fábula ao relatarem uma sequência de eventos para transmitir uma moral pautada em valores da vida real, e costumam retratar a vida de seus personagens somente sob a ótica dos eventos enredados na trama. Via de regra, quando se destaca algum acontecimento anterior ao presente da narrativa, trata-se de um artifício para justificar determinado aspecto do personagem ou evento que ocorre na história. Busca-se entreter o espectador e talvez tecer uma crítica ou outra, mas todos nós sabemos que por baixo dos panos de qualquer "enlatado" — note minha referência brega à Renato Russo, por favor — há estúdios que estão ali para gerar lucros e que, portanto, desejam sempre desenvolver o produto mais polido possível: uma história única e bem amarrada, uma performance condizente dos atores, uma direção artística incrível, etc., tudo para transportar o telespectador ao universo explorado pela trama e, com sorte, vender muito ou ganhar prêmios. E, após tudo isso, se o público aprovar e se o estúdio tiver condições parar arcar com os custos, é capaz desta primeira história gerar outros produtos em formas de sequências, prequels, séries e outros milhares de formatos, como se vê com o universo expandido que Disney e Marvel tem articulado, e muito bem, em cima de sua propriedade intelectual com o Marvel Cinematic Universe. Esta discussão, porém, fica para outro momento. Retorno:

Na forma mais honesta e sintética da retórica, bons filmes são incríveis e eficientes em nos alienar, e está tudo bem com isso. Acontece que neste ano em que minhas arestas me pareceram ambíguas e que até o tempo, tão preciso, me lembrava dos famosos relógios de Dalí, nem mesmo o filme mais redondo, polido, completo e amarrado teria me ajudado a sentir algum alívio.

Tenho recorrido, então, a outras histórias, que se encaixam em um subgênero que eu mesmo, enquanto publicitário viciado em categorizar e conceitualizar tudo, nomeei como Mundano Extraordinário. Tenho certeza que já existe alguma denominação para esta categoria que venho lhe descrever, mas admito que não sou grande connaisseur de gêneros e movimentos cinematográficos, nem tenho a paciência para exercer pesquisa teórica atrás de classificações preexistentes. Porém, fico aberto ao diálogo caso você, leitor, queira compartilhar algum texto interessante que discuta obras deste mesmo teor ou queira me recomendar algo que você tenha assistido e que se encaixe nas características que observei.

Em primeiro lugar, já admito antes de tudo que esse tal de Mundano Extraordinário, da forma como o apelidei, impõe um certo contrassenso. Afinal, se é mundano, como pode ser extraordinário? Chega a ser irônico, porém há motivo para tal denominação. Volto a me referir ao critério estabelecido em O guia completo do Storytelling para justificar o que venho lhe dizer: boas histórias, independente de serem mundanas ou fantásticas, ainda precisam de um algum evento ou artifício que dê partida no motor e inicie o caminho a ser trilhado na tela, e caso fossem triviais, não teriam motivo para serem desenvolvidas, financiadas, executadas, distribuídas e enfim reproduzidas por nós, espectadores, em nossos aparelhos. Logo, fica explicado o porquê de serem histórias extraordinárias.

A parte mais interessante, porém, vem da primeira palavra que uso para categorizar os conteúdos que tenho visto. Me refiro ao mundano como tudo aquilo comum às nossas vidas, mas sem esquecer da subjetividade que essa classificação carrega. Justamente por esse motivo, talvez, que goste tanto dessa palavra, já que a minha concepção de mundano com certeza deve ter semelhança em algum grau com o que você, leitor, considera como mundano para si, embora, indubitavelmente, mesmo com essa infinidade de semelhanças entre nós dois, imagino haver também um infinito ainda maior de nuances, sutilezas e individualidades. Até mesmo o tempo é capaz de alterar o que é mundano para alguém. O que sei é que a classificação que eu, Felipe Beck do momento presente, daria a este tal "mundano", facilmente poderia ser entendido como algo chato, ou indesejável, longínquo, para o eu de um ano, ou mesmo o eu de dias atrás. Imagino que Heráclito tenha dito algo a ver com esta reflexão que proponho, mas não quero que isso aqui fique parecendo um artigo científico, então me limito a citar apenas seu nome.

Assim, o que classifico como Mundano Extraordinário é essencialmente meu, e tenho certeza que você poderá encontrar o seu também, assim como sei que em algum grau haverá convergências entre nossos critérios, e certamente nestas trocas que se encontra a riqueza desta classificação. Para o que você possa entender o que tenho classificado sob este critério que orgulhosamente inventei, passo, então, a explicar o meu Mundano Extraordinário:

Ressalto em primeiro lugar algo que tenho visto como essencial para contribuir à minha noção de mundano: a língua falada na obra. Tenho percebido em meio às minhas divagações pandêmicas que conteúdos em inglês, por mais ubíquos que sejam, me soam cada vez mais artificiais. Não foi sempre assim, entretanto: antes tinha o mal hábito de avaliar produções locais, ou latinas — vulgo em espanhol, francês, italiano, etc., sem necessariamente importar o país de origem — sob o paradoxo da linguagem em inglês, que sempre fui ensinado a consumir em 20 anos de aculturação, e ouso dizer, certo colonialismo estadunidense e britânico, embora hoje tenha a maturidade de entender que estes são universos completamente diferentes quando comparados ao mundo latino-americano que estou inserido, sobretudo em tempos recentes. Para além dos troncos linguísticos divergentes aos quais as línguas latinas e anglo-saxônicas pertencem, há de se considerar também as manifestações culturais dos territórios em que elas se fazem presentes, que acabam por influenciar a forma como se pensa e vê o mundo. Logo, é de se esperar que estas diferenças se manifestem também no audiovisual produzido nestes locais. O que venho dizer, portanto, é que embora tenha assimilado durante a maior parte da minha vida conteúdos em inglês, não conseguiria colocá-lo dentro do meu espectro de mundano, e assim tenho recorrido ao consumo de obras preferencialmente em português, espanhol, ou mesmo em francês, quando o mood é esnobe. Entre uma miríade de clichês, poderia estar dirigindo um Mustang conversível sob o céu da Califórnia, ouvindo Bon Jovi e segurando um copo enorme de Coca-Cola com uma das mãos, e mesmo assim não deixaria de ser brasileiro; seria como uma mera emulação de um comportamento que me foi ensinado pela mídia desde pequeno mas que não corresponde ao que sou.

Resolvida a pauta linguística, busco elucidar como classificaria uma história como parte do Mundano Extraordinário. Acima de tudo, não tenho buscado grandes aventuras, muito menos histórias que possam ser lidas como incríveis dada sua especificidade e as circunstâncias únicas que se desenrolam no filme. Pelo contrário, tenho buscado por obras que dialoguem em algum nível com a realidade que eu vivo, sem que sejam, necessariamente, histórias que poderiam ter se passado na minha vida, mas narrativas que retratem eventos verossímeis à realidade que vivo e suas adjacências, quase como se estivesse vendo um registo etnográfico, ainda que tal terminologia não seja nem de longe a mais adequada para descrever ficção. É sobre ver como artistas escolhem abordar discussões e tecer seus próprios pontos de vista sob a condição de que toda discussão, de forma egoísta, tenha passado pelo meu crivo de realidade. Mais do que isso, é sobre estabelecer diálogos entre a expressão artística de autores e a vida que de alguma forma presenciei, ou talvez tenha apenas ouvido falar, mas que sinto fazer parte da minha subjetividade.

Levando em consideração este último critério, entendo o motivo pelo qual já não consigo mais ter tanta empatia com Andy e Miranda, por exemplo. Quantos editores de moda e seus respectivos assistentes conheço? E quais as chances de um dia fazer parte do universo que se retrata aqui? Para ambas as perguntas, zero, pelo que imagino. E quando terei discussões sobre as malditas botas Chanel? Mesmo que receba o melhor salário do mundo, minhas prioridades colocam essa pauta a alguns — e bons — anos de distância de mim. Por mais que adore o conjunto da obra e tenha vivenciado experiências semelhantes com as de Andy, não consigo deixar de notar a enorme distância, geográfica, cultural e cotidiana que nos separa.

Por fim, me dirijo à execução da narrativa de uma obra como fator essencial para que ocorresse o despertar do meu interesse no Mundano Extraordinário enquanto critério para classificar um filme. E especifico também o porquê do meu uso desta terminologia para classificar apenas este tipo de obra.

Grande parte das minhas críticas às tais películas de apelo comercial vêm do uso recorrente Jornada do Herói, conforme definiu Joseph Campbell, de modo praticamente formulaico. De forma sintética, trata-se da forma como estamos acostumados a ver histórias na maior parte dos filmes, em que um protagonista vive uma vida pacata, é apresentado a um conflito central que dá o gás inicial à trama, e esta se desenvolve até sua resolução no fim do filme. Aos interessados em aprenderem mais, deixo o link de um vídeo TED explicando mais sobre o assunto.

Retomo: mais forte do que meu desejo por enredos bem resolvidos, tenho buscado histórias que retratem a vida como eu tenho a percebido nos últimos tempos. Não quero mais epopeias, e sim um contínuo de eventos, pois a vida dentro de casa não tem me trazido grandes acontecimentos; não quero mais um final chocante, nem uma história que sirva a este propósito, mas ver como se desenrola a vida de um personagem que poderia existir no que considero como mundano. Mais do que uma jornada, tenho buscado o que entendo como uma crônica em formato audiovisual. E em razão disso, entendo que o formato mais adequado para a realização desse desejo é o filme, seja ele em formato de curta — algo que ainda não tive a oportunidade de explorar, admito — ou longa-metragem. Não poderia, por exemplo, ser uma série, ao menos que fosse uma antologia, pois caso contrário tornaria este meu desejo, quase voyeurístico, em algo extremamente longo e tedioso. E mesmo um outro formato, como um podcast, não teria o mesmo charme agregado de se verem cenários, vestimentas, enfim a vista de gente e de mundo, ainda que travestida em personagens e realidades ficcionais, pode me trazer. Dessa forma, entendo que meu Mundano Extraordinário se satisfaz com doses esporádicas, de uma a duas horas, de áudio e vídeo.

Explicados os meus critérios, convido você, leitor, a assistir três obras que vi recentemente e que me inspiraram a escrever este, prestes a se despedir. Espero também que sirva de inspiração para descobrir o que compõe o seu Mundano Extraordinário, e que possamos, quem sabe, estabelecer trocas acerca do que temos descoberto. Abaixo, além de uma breve análise das obras, deixo meu contato aos que quiserem compartilhar comigo novos conteúdos. Você pode me mandar um e-mail em felipbecklebihan@gmail.com.

Poderia também dar-lhe meu @ no Instagram, mas o entendo como inútil já que não pretendo acessá-lo com muita frequência. Fiquemos então com o e-mail, como se estivéssemos no começo dos anos 2000, olha só que vintage.

Um homem vestindo camisa rosa e calça cinza e uma mulher vestindo um vestido preto estão em primeiro plano, de costas, na borda de uma piscina vazia e abandonada, no quintal de uma casa, durante um dia ensolarado. Ao fundo, se veem prédios que compõem a paisagem da cidade de Recife.
Foto: Divulgação

O Som ao Redor

Kleber Mendonça Filho (2012); Disponível em: Mubi, Netflix

Neste longa do diretor de Bacurau e Aquarius são contadas diversas histórias em paralelo de habitantes de uma mesma rua no Recife, assim como o desenrolar de eventos que se passa com a chegada de uma milícia ao lugar. Aliando o uso esperto de recursos de som ao retrato de um microcosmo tão comum nos dias de hoje, o diretor busca tecer críticas ao Brasil contemporâneo, pautado em grandes centros urbanos, seus condomínios, e o antagonismo entre classes sociais nestes espaços. Mais do que as histórias dos personagens, me interessou ver como o diretor buscou compor um retrato ficcional, mas preciso, da sociedade brasileira em todos os seus trejeitos, estéticas e, acima de tudo, contravenções e hipocrisias.

A imagem mostra duas mulheres, em primeiro plano, com os rostos próximos entre si. A primeira, à esquerda, leva uma mochila preta nas costas e usa regata, seu cabelo é castanho-claro e está preso. A segunda, à direita, é mais jovem e também tem cabelo castanho-claro, mas o leva solto. Ela veste uma blusa branca e leva uma mochila de alças roxas nas costas. Ambas tem seus olhos fechados.
Foto: Divulgação — ©Berlinale

Jovem e Aloucada

Joven y Alocada; Marialy Rivas (2013); Disponível em: Netflix

Esta obra é a primeira da diretora chilena e conta a história de Daniela (Alicia Rodriguez), uma adolescente vinda de uma rígida família evangélica que secretamente mantém um blog para relatar todas as aventuras sexuais de seus 17 anos. Após ser expulsa do colégio cristão por ter tido relações com um colega, seus pais lhe arranjam um trabalho em uma emissora ligada à Igreja, onde ela experimenta com sua sexualidade e tenta encontrar-se espiritualmente. Mesmo se tratando de uma obra chilena com alguns anos de idade, se mantém extremamente relevante no contexto sócio-político que vivemos, marcado pelo fundamentalismo religioso da autoridade máxima deste nosso País juntamente de seus apoiadores. Independente de sua classe, a história de Daniela é extremamente interessante uma vez que permeia a juventude latino-americana, independente do local em questão, e propõe discussões acerca da liberdade — sexual, religiosa, de gênero — e os sempre presentes conflitos geracionais.

Um homem jovem, sem barba, tem seu rosto mostrado em detalhe na fotografia, olhando fixamente para algo que não está no plano. Ele tem o cabelo castanho, um pouco comprido e desajeitado, e usa lápis contornando seus olhos. Refletida em seu rosto, também na área dos olhos, há uma luz vermelha.
Foto: Divulgação

Mãe Só Há Uma

Anna Muylaert (2016); Disponível em: Netflix

Este filme, da mesma diretora de Que Horas Ela Volta?, talvez seja o menos mundano dos três destacados ao retratar um pedaço da jornada identitária de Pierre/Felipe (Naomi Nero), um adolescente, também em seus 17 anos, que passa a viver com uma nova família após descobrir que a mãe que o criou lhe havia roubado na maternidade. Nesta nova família, mais abastada e com os trejeitos clássicos do que se entende como "família tradicional brasileira", ele se vê tendo que lidar com as imposições e expectativas de pessoas que o buscaram durante toda sua vida. Em meio a este conflito central, o personagem se vê explorando sua sexualidade em um roteiro que busca, ainda que sem muita profundidade, provocar o espectador ao escancarar tabus ligados aos padrões do masculino no contemporâneo.

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Felipe Beck Le Bihan

Estudante na ESPM-SP. Consumidor de cultura pop e outras coisas também, autocrítico e às vezes meio mala. felipebeck.com