Hoje acordei como todos os dias.

Felipe Beck Le Bihan
7 min readSep 28, 2021

Uma história de Fujifilm Instax ®

Hoje acordei como todos os dias. E todos os dias, acordei como se fossem hoje.

Tem sido assim há quase um ano, desde que o mundo virou de cabeça pra baixo e cada um de nós ficou recluso, como um animal em um casulo, dentro de seus próprios espaços. E tem sido quase mecânico desde então. Acordo, café, uma banana, um pouco de aveia. Banho, trabalho, almoço, trabalho. Uma pausa. Janto. Estudo. Durmo. Acordo e repito cada dia como se todos fossem um só; já não tenho mais noção de datas, calendários, do tempo. É como se o tempo tivesse virado um grande borrão, complexo e angustiante.

Já não me pergunto mais quando isso vai acabar. Tecer expectativas em cima daquilo que é incerto é para tolos. E eu, tão centrado no real, naquilo que meus pés se apoiam, naquilo que meu corpo veste, naquilo que meus dedos tocam. Eu jamais poderia aceitar isso. Já fui um sonhador, é verdade. Mas o mundo que vejo faz com que sonhar seja cada dia mais difícil. Me relego, então, na rotina.

Hoje, excepcionalmente, acordei como todos os dias. Saí da minha cama às 7h30 ou talvez um pouco depois, ao som agudo e insistente do despertador. Fiz meu café como faço sempre: encho dois terços de uma xícara com um espresso quente e completo com leite gelado para equilibrar a temperatura, então logo bebo todo seu conteúdo em um grande gole como se tivesse apressado para um compromisso. Não era meu caso no dia de hoje, pois tudo corria como planejado. Tomo um banho quente que me ajuda a terminar de acordar e me visto com uma camiseta preta e uma bermuda curta, desbotada, que aperto com um cordão que envolve a cintura. A câmera e os colegas de trabalho no meu laptop não me enxergam do tronco para baixo. Parece que ninguém mais me vê sem ser por uma tela.

Aproveito que tenho algum tempo antes de trabalhar e me dedico a organizar meu espaço. Adquiri uma metodologia própria com o passar do tempo, uma ordem que me ajuda a estar são em meio ao surrealismo que sinto do lado de fora. Tudo precisa estar em seu devido lugar para funcionar. Abro um armário um pouco esquecido do meu quarto e tiro delicadamente o pó que acumula nas superfícies brancas.

“Caramba, quanta coisa eu colecionava antes, que bagunça.”, digo a mim mesmo em voz alta. Ficar sozinho me permite projetar para fora tudo o que penso, pelo menos.

Em meio à limpeza de cada objeto ali, me encontro com uma curiosidade quase infantil em redescobrir tudo aquilo que eu guardava naquele armário esquecido. Tem chaveiro e outros souvenirs daqueles que se compram no fim de visita em museu, mas também tem algumas preciosidades que coleciono em cada caminho que percorria antes. Em uma época em que era muito mais fácil explorar o mundo. Vejo uma caixinha, retangular e de lata prateada, escondida em um canto em meio a uma pilha de outros cacarecos. Abro e encontro pequenas fotos que costumava fazer com uma câmera instantânea que meu pai havia me dado em um natal, um presente de viagem que eu tinha pedido para ele anos atrás.

Eram fotos de lugares que visitei, de gente que conheci, de todas as coisas, pequenas e grandes, que registrava através das lentes. Parecia algo tão distante. Mas havia algo ali que me convidava a revirar toda a vida que, embora congelada em pequenas imagens, me parecia ser muito mais viva que todo o espaço que me cercava nos últimos tempos.

Com um impulso, viro todo conteúdo da latinha de cabeça para baixo e o chão do meu quarto fica tomado por centenas das pequenas fotos. Movido por uma curiosidade voraz, me sento no chão e passo a tatear os registros, como quem descobre grandes tesouros escondidos. Pego uma foto.

Meus olhos fecham e sinto meu corpo envolvido por uma brisa delicada, um clarão intenso toma meus olhos ainda fechados e um som distante de uma maré vem até meus ouvidos e me convida a ver o que passava. Já não estava mais no meu quarto, mas em uma praia. Sentia a areia morna de sol tatear meus pés delicadamente.

“Como assim?”, pensava, confuso, mas com certo encanto. Olho para o céu e vejo um azul, um azul muito específico, com um tom claro e intenso que era só dele e que só tinha em um lugar do mundo: Califórnia. Não havia uma nuvem que pudesse atrapalhar. Era um dia ensolarado, mas não fazia calor. Parecia muito a Califórnia. Mas não podia ser, faz quase dez anos desde a última vez que estive lá. Atordoado, ouço chamar:

“Ei, vem cá!”, dizia uma voz me interrompendo atrás dos meus ouvidos. Parecia a voz da Ana. Mas faz muito tempo que a gente não se via, então não podia ser. A última vez que nos vimos foi pouco depois de nos conhecermos em Los Angeles, ela com uma outra amiga, e eu sozinho na viagem. Uma daquelas amizades que se formam na hora, sabe? E que a gente raramente se encontra depois. Uma daquelas amizades momentâneas que a gente coleciona junto com as nossas aventuras, pequenos encontros que ficam nos lugares que, como cúmplices, descobrimos juntos para então cada um seguir seu próprio caminho.

“Vem logo! Tá ignorando a gente?”, dizia, impaciente, uma vozinha nasalada. Não podia ser, mas era? Sim, sim, era a Ana, mas estava me chamando?

“Para de olhar pro alto como se fosse idiota, vem aqui, a gente vai tirar uma foto!”

“A gente vai tirar uma foto”, ouvia ecoar em minha cabeça em descrédito. Dou meia volta, atônito. Eu realmente estava na Califórnia?

Fecho os olhos novamente.

Allez, allez, c’est bon déjà!”, me diz um senhor de voz rabugenta. O som da maré e da brisa transformados instantaneamente em uma profusão de sons vindos carros, motos, buzinas, línguas mil. O céu, tão azul, adquiria agora um tom cinza, e tudo tinha um cheirinho de tabaco que me dizia que só podia ser o ar de Paris. Dessa vez, abaixo a câmera de frente dos meus olhos e vejo o Arco do Triunfo ao fim da avenida. Eu estava na França! Como podia ser, se até minutos atrás estava do outro lado do mundo, nos Estados Unidos? Cerro o olhar novamente. Dessa vez, vejo o Coliseu pelas lentes da câmera. Incrédulo, fecho os olhos de novo.

Bastava um piscar de olhos, então, para me transportar? E viajar o mundo como antes? A possibilidade do inusitado, em meio à tanta calma e tanta ordem, a mera hipótese fazia de meu corpo algo vivo novamente. A vida parecia excitante de novo, enfim. Cada foto me levava em uma viagem. Podia ser para o outro lado do mundo, assim como para lugares que conhecia tão bem, desde a casa de minha avó até todos os lugares que outrora explorei com coragem e a companhia dos meus registros. Era como um superpoder viajar para este paralelo particular de todos os momentos que vivi. E quanta coisa eu já vivi. Fecho os olhos uma última vez. Estou de volta ao quarto cinza que abriga há quase um ano.

Vivi. A realidade, como um golpe no estômago do qual não se pode desviar, não deixa nunca de vir à tona.

É, vivi. Quanto mais viajava, mais me lembrava de como todos esses momentos pertenciam, na verdade, a um passado. E viver de passados pode ser extremamente sedutor para quem se encontra em um presente tão enfadonho, de fato. Hora ou outra, aquilo tudo, tão mágico, inevitavelmente se esgotaria. E o peso desse cotidiano cronometrado, regrado, iria, em algum momento, cair sobre mim.

E mesmo conformado, sinto que este presente dói muito, devo admitir. Em busca da ordem como resposta para um mundo que, de um dia para o outro, deixou de ser o que era, me encontrei transformado em um relógio suíço de carne e osso. Acontece que a mecânica e a precisão são características de relógios suíços e não de gente. Viver em casa me fez menos gente, me fez menos vivo, me tornou uma criatura apática. Cada viagem era um pequeno suspiro que me mostrava o que realmente sou. Na desordem de todas as fotos espalhadas pelo chão, pude, ainda que brevemente, me encontrar. Em cada lembrança, o recado de que tudo que vivi fez de mim, eu mesmo. Não essa versão lânguida do presente, mas aquela que tinha coragem de sonhar, descobrir e desbravar todos os lugares, sozinho ou com companhia, seja ela de gente ou dos registros que fazia pelo caminho.

A vida atual é difícil, é verdade. Mas levo, então, uma lição que aprendi com o passado: assim como eu me alimento de memórias para seguir meu caminho, ele devora e toma para si o presente. Cada registro que faço é um marco do todo que percorri para chegar até aqui. E os melhores registros, aqueles que guardamos como relíquias e que nos nutrem em momentos de saudosismo, estes registros também são acompanhados dos percalços de seus respectivos presentes. E embora alguns presentes sejam mais amargos que outros, sempre há o doce recordatório da memória para nos remediar.

Hoje, acordei como se fossem todos os dias. Mas me recordo de que nem todos os dias são como hoje, e que o amanhã chega em breve para que o hoje vire memória. E então, como um piscar de olhos, a vida se constrói com registros que levamos conosco para frente.

Este é um trabalho autoral de Branded Content para a disciplina de Storytelling, do sexto semestre do curso de publicidade e propaganda da ESPM, ministrada pela professora Martha Terenzzo.

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Felipe Beck Le Bihan

Estudante na ESPM-SP. Consumidor de cultura pop e outras coisas também, autocrítico e às vezes meio mala. felipebeck.com